Ciclo de polícia e a ordem constitucional de 1988

Igor Rodrigues

12/10/20249 min read

Autor: Igor Rodrigues

Ciclo de polícia e a ordem constitucional de 1988

Um dos mais importantes serviços públicos prestado pelo Estado é o de ordem pública (segurança pública) e sua ineficiência representa um problema social grave, afinal um Estado que não consegue promover a ordem a seus cidadão, claramente, falha no cumprimento do Contrato Social e permite, de modo contrário, a desordem, tendo por consequência o desenvolvimento atrofiado de seus cidadãos.

Neste artigo, pretende-se discutir o ciclo de polícia a partir da interpretação da ordem constitucional de 1988, o início e o fim do ciclo de polícia e ordem pública, os órgãos executores do poder de polícia e suas atribuições, as contrariedades ao ordenamento jurídico promovidos pela prática dos órgãos policiais, e obviamente, a discussão corporativista e política que o assunto envolve.

Ordem pública ou segurança pública?

Ordem pública é o efeito (gênero), dividindo-se nas causas (espécies) tranquilidade pública, segurança pública e salubridade pública, conforme ensinou Álvaro Lazzarini (1992, p. 279).

  • Tranquilidade pública diz respeito à convivência pacífica e ao bem estar social, onde reina a normalidade das relações.

  • Segurança pública diz respeito ao estado antidelitual das relações, de observância das leis penais.

  • Salubridade pública diz respeito às situações favoráveis à condição de vida.

O emprego das palavras pelo legislador constitucional, a princípio, não acarretou consequências graves aos cidadãos, mas nos causa inquietação, principalmente para o desenvolvimento prático das atividades de ordem pública, que depende de correta interpretação da lei por todos os operadores do direito, em especial as instituições policiais.

Poder de polícia

Muito questionada por aqueles que desconhecem o cotidiano desses profissionais, infelizmente a maioria, a polícia brasileira, diariamente, esforça-se de modo hercúleo para garantir o cumprimento do Contrato Social, sendo muitas vezes, injustamente, questionada sobre a legalidade de seus atos. Mas o que seria o poder de polícia? Pode a polícia fazer o que faz?

Poder de polícia, nas palavras de Hely Lopes Meirelles (1999, p.115), é a “faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”, portanto o poder de polícia é característica do próprio Estado, um está ligado ao outro intrinsecamente.

Importa destacar que nenhum direito é absoluto no ordenamento jurídico brasileiro, todos eles encontram limites nos demais direitos, e aí entra o poder de polícia, afinal, entre os motivos de criação do Estado está o de condicionar e restringir as relações entre os cidadãos nos mais diferentes aspectos da vida.

Órgãos de polícia brasileiros

O legislador constituinte, no aspecto ordem pública, escolheu alguns órgãos para garanti-la. Os principais órgãos estão previstos no art. 144 da CF:

  • - Polícia Federal (CF, art. 144, inc. I e § 1º);

  • - Polícia Rodoviária Federal (CF, art. 144, inc. II e § 2º);

  • - Polícia Ferroviária Federal (CF, art. 144, inc. III e § 3º);

  • - Polícias Civis (CF, art. 144, inc. IV e § 4º);

  • - Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (CF, art. 144, inc. V e §§ 5º e 6º);

  • - Polícias Penais (CF, art. 144, inc. VI e § 5º-A); e

  • - Guardas municipais (CF, art. 144, § 8º).

Importante destacar que, conforme interpretação ampla da lei, os órgãos de polícia, majoritariamente, possuem atribuição específica, exceção feita às polícias militares, que possuem atribuição residual, isto porque, constitucionalmente, é atribuição da PM preservar a ordem pública, ou seja, fazer tudo aquilo que não é atribuição dos demais órgãos. Talvez seja esse um dos motivos de serem militares, evitando, em condições normais, a indisciplina e descontinuidade na prestação do serviço de polícia ostensiva e preservação da ordem pública, e em condições anormais (grave quebra da ordem pública), como militares que são, a possibilidade legal de acúmulo de atribuições (que em condições normais, seriam específicas), de modo a cumprir o previsto na CF, art. 144, § 5º.

Polícia administrativa e polícia judiciária

Ambas as expressões são espécies de classificação dos órgãos policiais, porém, muito se confunde e se utiliza erradamente, inclusive pelos próprios policiais, as expressões polícia judiciária e polícia administrativa.

O termo “polícia administrativa” significa polícia da Administração (com letra maiúscula mesmo), isto é, polícia pertencente à Administração pública (mais especificamente ao Poder Executivo), portanto esse termo deve ser empregado para classificar um órgão policial quanto a localização dentro da organização do Estado.

O termo “polícia judiciária” significa polícia auxiliar da Justiça, isto é, polícia administrativa auxiliar do Poder Judiciário, portanto esse termo deve ser empregado para classificar um órgão da Administração quanto a uma das suas funções atribuídas pela Lei, qual seja a de auxiliar a Justiça.

Percebemos, portanto, que a Polícia Federal (CF, art. 144, § 1º, inc. IV), as Polícias Civis (CF, art. 144, § 4º) e as Polícias Militares (CF, art. 144, § 4º in fine c/c CPPM, art. 9º e 10º) desempenham, além de outras funções, a função de polícia judiciária, e são, ao mesmo tempo, polícias administrativas.

Ciclo de polícia e ordem pública

O ciclo de polícia é a representação esquematizada do início das atividades de polícia até o término delas (que coincide com o início de outro importante ciclo: o ciclo de persecução penal).

O melhor referencial para esquematização do ciclo de polícia é a ocorrência de uma infração penal, e a partir daí, definimos as fases dele:

  • Fase de prevenção: situação em que os órgãos policiais com atribuição preventiva desenvolvem esforços para prevenir a ocorrência de uma infração penal;

  • Fase de repressão: situação em que os órgãos policiais com atribuição repressiva desenvolvem esforços para reprimir a ocorrência de uma infração penal, dividindo-se essa fase em:

> Repressão imediata: os órgãos policiais atuam imediatamente para restaurar a ordem pública, e uma vez conhecendo o autor e o fato (a materialidade) infracional penal (notícia-crime) leva-os ao conhecimento do Poder Judiciário, que iniciará o ciclo de persecução penal;

> Repressão mediata: os órgãos policiais atuam de forma mediata (à médio ou curto prazo) para restaurar a ordem pública, isto é, uma vez conhecendo apenas um dos elementos da infração penal (autor ou fato), promove a apuração da infração penal, a fim de subsidiar com elementos a propositura da ação penal.

Para ilustrar o ciclo, veja a imagem a seguir:

Na fase de prevenção, encontramos todos os órgãos policiais previstos no artigo 144 da CF, exceto as Polícias Civis, isto porque, conforme artigo 144, § 4º da CF, ela possuiu atribuição de “(...) ressalvada a competência da União” (atribuição da PF), exercer “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares” (atribuição das PM), portanto as Polícias Civis foram criadas pelo legislador para atuação específica na fase de repressão mediata, isto é, na investigação da infração.

Cabe ressaltar que por previsão infraconstitucional (Código de processo penal – decreto-lei nº 3.689/41), como qualquer do povo, e sendo também autoridade policial, os policiais civis devem prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito, nos termos do art. 301, do CPP (fase repressiva), entretanto não é missão específica dela realizar o policiamento preventivo (fase preventiva).

Dicotomia policial?

A partir do modelo adotado pelo legislador constituinte é que surgiu a ideia de uma dicotomia policial, ou seja, diante de uma infração penal, atuam dois diferentes órgãos, normalmente a Polícia Militar e a Polícia Civil, que possuem um maior rol de infrações a prevenir, reprimir e apurar (atribuição residual dos demais órgãos policiais).

A partir de uma visão dicotômica, política, desapegada do ordenamento jurídico e recheada de corporativismo, é que na prática “a PM prende e leva para a PC registrar”, o que não encontra amparo legal, afinal, o modelo adotado pelo legislador na ordem constitucional de 1988, conforme se vê na interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, é de que o órgão policial que prendeu um infrator encaminhe a infração penal diretamente ao conhecimento do Poder Judiciário, para início do ciclo de persecução penal, por meio de uma representação, que pode ser o auto de prisão em flagrante (CPP, art. 304; CPPM, art. 245) ou portaria (CPP, art. 26), o termo circunstanciado (lei 9.099/95, art. 69), auto de apreensão (ECA, art. 173, inc. I) para casos de ato infracional, podendo ser substituído por boletim de ocorrência circunstanciado (ECA, art. 173, § único), ou outro meio (representação) que a lei permita.

Na prática, e na maioria do Estados brasileiros, o ciclo de polícia é desviado do seu caminho legal, isto porque, mesmo após a edição da CF88, ainda impera um modelo de repartição de atribuições burocratico, contaminado por decisão política e corporativismo. Neste cenário, quem mais sofre é o cidadão, além dos policiais, que demoram longas horas para unicamente registrar um crime, em decorrência de embaraços administrativos promovidos pelos administradores públicos.

Nesse sentido vale destacar que a recente lei nº 13.675/18, que, além de outras finalidades, instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), prevê a aceitação mútua de registros de ocorrência policial (lei 13.675/18, art. 10, inc. III), o que, certamente, é um avanço para desburocratizar a atividade cartorária dos órgão policiais, beneficiando quem tem que ser beneficiado: o cidadão.

Inquérito policial

Se o autor tiver sido preso ou apreendido em flagrante, ou ainda tiver sido lavrado termo circunstanciado, e para o MP (Ministério Público) for dispensável o inquérito policial (CPP, art. 39, § 5º), procede-se à ação penal.

Caso contrário, isto é, se faltarem elementos para propositura da ação penal, a autoridade policial com atribuição de polícia judiciária (PF, PC e PM) deverá iniciar um inquérito policial, conforme o CPP, art. 5º (para crimes comuns), ou CPPM, art. 9º (para crimes militares), a fim de que seja elaborado relatório que subsidie a propositura da ação penal, que na maioria dos casos é atribuição do MP.

O inquérito policial é uma das espécies de representação (gênero) para início da ação penal, que dada importância dele, possui regras específicas para elaboração, portanto, ele não é o único meio de comunicação entre os órgãos repressão criminal (policiais) e de persecução penal.

Conclusão

O ciclo de polícia e ordem pública se inicia em dois momentos:

  • na prevenção à desordem pública, com a atuação dos mais diferentes órgãos estatais, sendo, normalmente, os órgãos policiais os primeiros a atuarem;

  • na repressão mediata às infrações, isto é, na investigação do fato ocorrido;

O ciclo se encerra quando uma representação (gênero) é encaminhada ao Poder Judiciário, mais especificamente aos órgãos responsáveis pela persecução penal, a quem, legalmente, incumbem o processamento e julgamento.

Em todo esse ciclo deve imperar os princípios constitucionais, entre eles o da celeridade, isto porque quando um órgão policial passa a gastar mais tempo na escrituração do seu trabalho do que na atividade fim, quem perde é o cidadão, que verá os algozes da sociedade atuarem livremente, enquanto os policiais estão presos à burocracia administrativa.

A obediência à taxatividade da lei é um dos princípios do direito brasileiro, em especial o direito penal, e não pode ser usada em benefício de determinados grupos, sob pena de promover a desordem pública, como pontuei no início deste artigo.

O conjunto de leis que regulamenta o ciclo de polícia e ordem pública brasileiros deve ser analisado de forma sistêmica e sistemática, afinal, como é característico do ordenamento legal brasileiro, muitas vezes, as leis são criadas e publicadas descontextualizadas, cabendo ao operador do direito o árduo e complexo trabalho de reuni-las e interpretá-las, a fim de dar operacionalidade, e em última instância, fazer valer a supremacia do interesse público, isto é, a de ver o cidadão seguro.

Referências
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999.

LAZZARINI, Álvaro. A ordem constitucional de 1988 e a Ordem Pública. Revista de informações legislativa. Brasília, a. 29, n. 115, p. 275-294, 1992.

Autor: Igor Rodrigues

Especialista em direito constitucional e administrativo pela Escola Paulista de Direito. Aprovado no XXXII Exame de Ordem. Especialista em ciências jurídicas pela Universidade Cruzeiro do Sul. Bacharel em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul. Bacharel em ciências policiais de segurança e ordem pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco. Técnico em Administração de empresas pela Associação Parnasiana de Ensino.