O impacto do “Pacote de corte de gastos” do governo federal na inatividade do militar do estado

Synthia Clei Marques Gomes e João Felipe Goffi de Araujo

12/18/20246 min read

O impacto do “Pacote de corte de gastos” do governo federal na inatividade do militar do estado

Autores: Synthia Clei Marques Gomes e João Felipe Goffi de Araujo

Introdução

O denominado “Pacote de corte de gastos” realizado pelo governo federal inclui a apresentação do Projeto de Lei (PL) nº 4920/24¹, protocolado em 17 de dezembro de 2024 na Câmara dos Deputados, o qual, dentre outras alterações atinentes à pensão dos militares, propõe estipular uma idade mínima para que os militares das Forças Armadas passem para a reserva remunerada a pedido.

Mas, o que isso implicaria na inatividade do militar do Estado?

Desenvolvimento

Para que possamos compreender o impacto deste PL na vida dos militares estaduais, primeiramente, faz-se necessário um conhecimento prévio de alguns termos utilizados e as normas em vigor. Vejamos.

1) O que é a Reserva?

Reserva é a situação da inatividade do militar sujeito à reversão ao serviço ativo.

Relacionando o assunto no âmbito do Estado de São Paulo, há o Decreto-Lei nº 260/70 ² que dispõe sobre a inatividade dos componentes da Polícia Militar do Estado de São Paulo, cujo artigo 16 elenca as duas formas pelas quais o militar do estado passará para a reserva: a pedido ou a “ex officio”.

Em complemento, o artigo 17 versa especificamente sobre a passagem para inatividade a pedido, in verbis:

2) Se o Decreto-Lei nº 260/70 não foi revogado, por quê os militares do Estado de São Paulo, que ingressaram a contar de 01 de janeiro de 2021, diferentemente do acima transcrito, devem cumprir 35 (trinta e cinco) anos de serviço prestado?

A questão é que, em 12 de novembro de 2019, houve o advento da Emenda Constitucional nº 103,  a qual, dentre outras modificações constitucionais sobre o sistema de previdência social, alterou o art. 22, inciso XXI da Constituição Federal de 1988 ³, este passando a ter a seguinte redação:

Cabe destacar que as únicas expressões que foram incluídas neste dispositivo constitucional foram "inatividades e pensões", visto que os demais elementos já eram previstos anteriormente. Assim, denota-se a clara intenção do constituinte em passar para a União a competência legislativa quanto à "aposentadoria" dos policiais e bombeiros militares. 

Acompanhando a EC nº 103/19, após aproximadamente 01 (um) mês, especificamente em 16 de dezembro de 2019, houve a reorganização da inatividade tanto dos militares federais quanto estaduais, por meio da promulgação da Lei federal nº 13.954/2019.

Assim, a resposta para a pergunta acima realizada encontra-se amparada no artigo 24-A, inciso I, alínea “a” do Decreto-Lei nº 667/69 ⁴, o qual reorganiza todas as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, incluído pela Lei 13.954/2019:

Tendo em vista o conflito aparente de normas acima existente, este deve ser solucionado por algum dos seguintes critérios: hierarquia, cronologia ou especialidade.

Desse modo, visto que a competência legislativa passou a ser da União e esta editou a lei que trata sobre temas gerais para todas as instituições militares estaduais, pautando-se no critério da hierarquia, esta deve prevalecer sobre todas as normas estaduais que também regulamentavam o tema. Além disso, embora seja dispensável utilizar-se de outro critério de solução deste conflito, a cronologia também solucionaria.  

Portanto, em que pese o Decreto-Lei nº 260/70 encontra-se vigente no Estado de São Paulo, o seu artigo 17, que versa sobre a inatividade a pedido do militar, foi revogado tacitamente pelo Decreto-Lei nº 667/69, após o advento da Lei nº 13.954/19.   

Conclusão

Assim, podemos concluir que o famigerado Pacote de Corte de Gastos proposto pelo Ministério da Fazenda liderado pelo atual Ministro Fernando Haddad atingirá em cheio os militares estaduais ao passo que, de acordo com o art. 24-h do Decreto-Lei nº 667/69, inserido também pela Lei nº  13.954/19, toda alteração de regras gerais de inatividade das Forças Armadas deve ser ajustada também no âmbito dos Estados, senão vejamos:

Nos termos do PL nº 4920/24 apresentado na Câmara dos Deputados, o governo federal propôs a idade mínima de 55 (cinquenta e cinco) anos para a transferência dos militares, a pedido, à reserva remunerada.

Ademais, fixou-se um regime de transição, segundo o qual não impactaria tão somente aqueles que já teriam cumprido o tempo de serviço necessário para a transferência à reserva remunerada quando sancionada a respectiva Lei.

Cumpre esclarecer que, atualmente, não há limite de idade para passagem para a reserva remunerada dos militares, bastando comprovar o tempo de serviço exigido de 35 anos, tanto aos militares das Forças Armadas, com previsão legal no artigo 97 da Lei nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares), quanto aos militares dos estados, conforme previsto no artigo 24-A, inciso I, letra “a” do Decreto-Lei nº 667/69.

Tendo em vista a possibilidade de alterações deste PL na tramitação legislativa, sobretudo em razão das divergentes interpretações que estão surgindo, limitamo-nos neste presente artigo quanto às questões gerais, não adentrando às especificidades das exceções de transição. No mais, discorreremos novamente caso haja a aprovação e sanção presidencial em um novo artigo.

A proposta de ajuste na idade mínima para inatividade dos militares estaduais, como parte do pacote de corte de gastos, gera implicações jurídicas e práticas profundas, sobretudo no que se refere à autonomia dos Estados.

A imposição da idade mínima para inatividade proposta pelo governo federal enfrenta um desafio jurídico, o qual trata do conflito entre o direito adquirido e a expectativa de direito. Ademais, embora esteja compatível com o ordenamento constitucional, após o advento da EC nº 103/19, ao nosso entender, eventual mudança precisaria ser compatível com o pacto federativo e realizado pelos Chefes dos Poderes Executivos estaduais (Governador de Estado), preservando a autonomia dos entes federativos.

Assim, em que pese a medida possa ser uma possível solução para a crise fiscal nacional, de acordo com o divulgado pelo governo federal, sua implementação requer cautela e diálogo com as corporações militares e os entes federativos, a fim de evitar conflitos institucionais quanto aos planos de carreiras militares e também de garantir a segurança jurídica.

Referências:

1 - Projeto de Lei nº 4920/24 - https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2480445

2- Decreto-Lei nº 260/70 do Estado de São Paulo – https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto.lei/1970/decreto.lei-260-29.05.1970.html

3- Constituição Federal de 1988 - https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm 

4- Decreto-Lei nº 667/69 - https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0667.htm

Autores: 

Synthia Clei Marques Gomes
Bacharel em Direito. Aprovada no XV Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Pós-Graduação em Docência do Ensino em Direitos Humanos. Professora de Direito Administrativo Militar.

João Felipe Goffi de Araujo
Bacharel em Ciências Policiais e Segurança e Ordem Pública. Bacharel em Direito. Aprovado no XXXVII Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Pós-graduado em Direito Público; Pós-graduado em Ciências Penais e Segurança Pública, Pós-graduado em Direito Processual Penal. 1º Tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Artigo 17- A transferência para a reserva a pedido poderá ser concedida ao militar que contar, no mínimo, 30 (trinta) anos de serviço, sendo 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial, com vencimentos e vantagens integrais do posto ou graduação. (grifo nosso)

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre :
[...]
XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares; (grifo nosso)

Artigo 24-A - Observado o disposto nos arts. 24-F e 24-G deste Decreto-Lei, aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios as seguintes normas gerais relativas à inatividade:
I - a remuneração na inatividade, calculada com base na remuneração do posto ou da graduação que o militar possuir por ocasião da transferência para a inatividade remunerada, a pedido, pode ser.
a) integral, desde que cumprido o tempo mínimo de 35 (trinta e cinco) anos de serviço, dos quais no mínimo 30 (trinta) anos de exercício de atividade de natureza militar; [...]. (grifo nosso)

Art. 24-H. Sempre que houver alteração nas regras dos militares das Forças Armadas, as normas gerais de inatividade e pensão militar dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, estabelecidas nos arts. 24-A, 24-B e 24-C deste Decreto-Lei, devem ser ajustadas para manutenção da simetria, vedada a instituição de disposições divergentes que tenham repercussão na inatividade ou na pensão militar. (grifo nosso)