O porte de arma de fogo por policiais militares de folga

Normatizações e entendimentos jurisprudenciais acerca do ingresso de policiais armados em estabelecimentos com aglomeração de pessoas.

Alessandro Almeida e João Felipe

12/11/20247 min read

Autores: Alessandro Almeida e João Felipe

O porte de arma de fogo por policiais militares de folga

É sabido que, pelos riscos inerentes à profissão, a autorização legal para o policial militar portar uma arma de fogo durante a sua folga é de suma importância, cujo objetivo não satisfaz apenas o seu dever garantidor da segurança pública, ao ter que adotar providências diante de um flagrante delito, ou até mesmo preservar bens patrimoniais pessoais, mas sim para garantir a sua própria vida.

Não é demais relembrar que o policial militar não pode sequer ter uma tranquilidade plena durante o seu momento de folga, pois pode ser reconhecido como agente da segurança pública e, tão somente por tal razão, tornar-se um alvo em potencial para os criminosos.

Contudo, rotineiramente surgem situações de discussão sobre a possibilidade de o policial militar portar o seu armamento (seja da instituição, seja particular) em locais com aglomeração de pessoas, sobretudo quando trata-se de estabelecimento privado.

E para solucionar tais indagações, sobre a legalidade ou não do policial militar adentrar em qualquer estabelecimento privado portando o seu armamento, devemos nos socorrer primeiramente à norma que rege o registro, a posse e o porte de arma de fogo no Brasil, qual seja o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03).

Assim, estabelece o artigo 6º, inciso II, desta lei, que o porte de arma de fogo é uma prerrogativa atribuída aos integrantes dos órgãos de segurança pública, dentre eles os policiais militares, conforme artigo 144, inciso V, da Constituição Federal. Ademais, o art. 6º, §1º, prevê que os policiais terão o direito de portar o armamento mesmo fora de serviço, com validade no âmbito nacional.

Cabe ressaltar que esta lei não esgota o assunto quanto ao porte legal de arma de fogo no Brasil, tendo em vista se tratar de uma lei penal em branco, a qual é disciplinada por ato do chefe do Poder Executivo Federal, mediante proposta do Comando do Exército, nos termos de seu artigo 23. Atualmente, o decreto presidencial que regulamenta tal Estatuto é o de nº 11.615, de 21 de julho de 2023.

E seguindo a lei federal, que separa as normatizações do porte de arma de fogo para defesa pessoal (vinculado ao cadastro na Polícia Federal) do porte de arma de fogo funcional (como exemplo do policial militar), este Decreto regulamentar prevê que:

Art. 51. O titular de porte de arma de fogo para defesa pessoal concedido nos termos do disposto no art. 10 da Lei nº 10.826, de 2003, não poderá conduzi-la ostensivamente ou com ela adentrar ou permanecer em locais públicos, como igrejas, escolas, estádios desportivos, clubes, agências bancárias ou outros locais onde haja aglomeração de pessoas em decorrência de eventos de qualquer natureza. (grifo nosso)

Em sentido diametralmente oposto, quanto ao porte de arma de fogo funcional, tal Decreto prevê em seu artigo 53, §5º, que: “atos dos Comandantes-Gerais das corporações disporão sobre o porte de arma de fogo dos policiais militares e dos militares dos corpos de bombeiros”.

Ainda também dispôs no artigo 55, §2º, o seguinte:

A edição de portaria pelo Comandante-Geral da Polícia Militar autorizando policiais militares a portarem arma de fogo, fora do horário de serviço, é irrelevante e não gera a obrigação de aceitação pelo particular. Aliás, a proibição do ingresso de pessoas armadas em casa noturna constitui zelo e cautela adotada pelo proprietário do estabelecimento para resguardar a integridade física dos frequentadores.
(TJSP – APL: 00011636120138260001 SP 0001163-61.2013.8.26.0001, Relator: J.L. Mônaco da Silva, Data de Julgamento: 24/02/2016, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/03/2016).

Dessa forma, verifica-se que o legislador pátrio deixou a cargo do Poder Executivo regulamentar acerca do porte de arma de fogo no Brasil, o qual, por sua vez, dispôs que cada instituição policial terá a incumbência de autorizar ou não o porte de arma de fogo funcional, mesmo que fora de serviço, em locais onde haja aglomeração de pessoas.

E do mesmo modo, acompanhando a legislação acerca deste tema, a recém-promulgada Lei Orgânica das Polícias Militares (Lei nº 14.751/23), dispõe em seu artigo 29, §4º: “Compete ao comandante-geral certificar o atendimento do direito ao porte de arma de seus militares, bem como as hipóteses excepcionais de suspensão e cassação de porte de arma”.

Neste sentido, no âmbito da Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Comandante Geral editou a Portaria nº PM4-001/1.2/24, que dispõe sobre a propriedade e o porte de material bélico, consignando no artigo 7º que fica autorizado ao policial militar portar arma de fogo durante a folga, em locais onde haja aglomeração de pessoas em virtude de eventos de qualquer natureza, desde que obedecidas certas condições:

  1. a arma não deve ser portada ostensivamente;

  2. o portador não pode ter ingerido substâncias que alterem sua capacidade psicomotora;

  3. caso haja policiamento no evento, este seja cientificado, devendo o militar de folga fornecer nome, posto ou graduação, unidade em que está classificado e as informações sobre a arma.

Ainda na Portaria supracitada, há previsão de que caso o segurança local do evento privado solicite ao policial militar seus dados de qualificação e de identificação do armamento, tais informações devem ser fornecidas.

Dessa forma, verifica-se que há respaldo legal e normativo para que os policiais militares ingressem em estabelecimentos privados em que ocorram eventos de qualquer natureza, com aglomeração de pessoas, portando arma de fogo. Contudo, indaga-se: esse entendimento é acompanhado pelos Tribunais? A resposta é NÃO.

O entendimento que prevalece no âmbito do Poder Judiciário é: caso o proprietário e segurança de local onde ocorra aglomeração de pessoas (como as casas noturnas) impeça a entrada de policiais militares de folga armados, tal conduta é plenamente justificável.

Para o Judiciário, os estabelecimentos comerciais são responsáveis por garantir a segurança de todos os presentes no evento, tendo em vista a disposição do artigo 6º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, que traz como direito básico do consumidor a proteção da vida, saúde e segurança, razão pela qual, ainda que em contrariedade com ato normativo do Comandante Geral, é lícito ao estabelecimento proibir a entrada de militares de folga armados.

Segue exemplo de julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

Os órgãos, as instituições e as corporações, ao definir os procedimentos a que se refere o caput, estabelecerão as normas gerais de uso de arma de fogo de sua propriedade, fora do serviço, em locais onde haja aglomeração de pessoas, em decorrência de evento de qualquer natureza, como no interior de igrejas, escolas, estádios desportivos e clubes, públicos e privados. (grifo nosso)

Por todo o exposto, verifica-se que a entrada de policial militar de folga, portando arma de fogo, em locais onde haja eventos com aglomeração de pessoas, encontra amparo no Estatuto do Desarmamento e seu Decreto regulamentador, na Lei Orgânica das Polícias Militares e em âmbito Institucional, desde que respeitadas as normas pertinentes.

Todavia, em que pese o arcabouço normativo favorável ao militar, o entendimento predominante nos Tribunais é de que, pautado na fundamentação de garantia da segurança de todos os presentes no evento, o segurança ou responsável pelo local pode impedir a entrada do policial, de folga, que esteja portando a arma de fogo.

Como deve o policial se portar no caso concreto?

Inicialmente, cabe destacar que este deve seguir todas as normatizações da sua respectiva instituição acerca do tema. A proposta deste artigo é tão apenas trazer esclarecimentos jurídicos e jurisprudenciais acerca da temática.

De todo modo, ao nosso sentir, caso o policial seja impedido de adentrar ao estabelecimento comercial em que haja aglomeração de pessoas, armado e de folga, no máximo caberia o acionamento de uma equipe policial de serviço, pelo número 190, a fim de registrar um Boletim de Ocorrência para preservação de direitos.

E, caso seja do interesse, o policial pode ajuizar uma ação cível pleiteando danos morais através da documentação realizada. No entanto, como supracitado, verifica-se que as decisões judiciais são contrárias ao policial, aduzindo que tal fato não passa de um “mero aborrecimento” não passível de indenização.

Assim, pode haver novamente a seguinte dúvida: “Mas, afinal, por que ajuizar a ação se o Poder Judiciário, majoritariamente, decide o contrário?”. Pois não há qualquer decisão com repercussão geral das Cortes Superiores, razão pela qual frisamos “cada caso é um caso”.

Outra dúvida ainda que pode surgir é se o segurança do evento ou o responsável legal pelo estabelecimento comercial responderia pelo crime de constrangimento ilegal ou desobediência.

A nosso ver, não responde por nenhum dos dois, visto a ausência de tipicidade formal em ambas as infrações penais. Não há constrangimento ilegal pois esse crime necessita de violência ou grave ameaça. Também não há desobediência uma vez que o policial militar de folga, nessas circunstâncias, não atua em nome do Estado, investido da qualidade de funcionário público, mas sim por interesse particular.

Autores: 

Alessandro Almeida Couto Júnior
1º Tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Bacharel em Direito e em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, Pós-graduado em Ciências Jurídicas.

João Felipe Goffi de Araujo
1º Tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Bacharel em Ciências Policiais e Segurança e Ordem Pública, Bacharel em Direito, Pós-graduado em Direito Público; Ciências Penais e Segurança Pública; e Direito Processual Penal. Aprovado no XXXVII Exame da Ordem dos Advogados do Brasil.